segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Banda Sonora Original,1

 Dinner at Eight, Rufus Wainwright

E há este fenómeno que algumas canções contêm: inspiram-nos medo. Receamo-las pelo excesso de tristeza, pelo excesso de beleza, pela mais pura impotência que nos conferem. Não têm necessariamente que chocar com os nossos dias ou actuarem como espelhos mais ou menos distorcidos. Basta que nos enfrentem com uma verdade reconhecível, dolorosa ou não.
Dinner at Eight, incluído no espantoso Want One (2003), é uma dessas canções. Para ser rigoroso, trata-se de um ajuste de contas cantado e musicado, com a voz e as palavras  de Rufus Wainwright a traduzirem anos de raiva e mal estar que de repente irrompem de forma vulcânica, libertados por pretextos banais, cobrindo uma solidão e uma necessidade de amor que esfaqueiam a alma. Transforma-nos em voyeurs hipnotizados por um psicodrama que tem lugar mesmo à nossa frente. Transmitem a mesma sensação de incómodo que nos assola quando um casal desconhecido discute em voz alta perto de nós. Apetece calar aquela força, fugir. E tudo se torna ainda mais perigoso quando sabemos que este combate a que assistimos é entre um pai e um filho.

Loudon Wainwright III, o pai presente neste jantar, não terá tido tanto sucesso nas ligações familiares como o teve na sua carreira artística: para além deste Dinner At Eight, a sua filha Martha gravou o mais explícito Bloody Mother Fucking Asshole e dedicou-o ao paizinho. Mas se a família era disfuncional pelo menos tinha talento: Wainwright sénior foi uma estrela nos anos 60 e 70, chegando a ser considerado o «novo Bob Dylan». Já em 2010 venceu o Grammy para  Melhor Álbum de Folk Tradicional, com High, Wide & Handsome. As suas canções misturam humor e contestação, e foi admirado pela sua coragem e ao mesmo tempo por ser um tipo porreiro. Michael Palin, um ex- Monty Python, escreve no seu diário que o conheceu em 1969, durante a tournée americana do grupo e o achou muito simpático e divertido. De facto, Loudon espalhava o seu encanto por todo o lado e era requisitado para variadíssimos eventos sociais: afinal era um aristocrata nova-iorquino, descendente directo de Peter Stuyvesant , o último director –geral da colónia holandesa dos Novos Países Baixos e responsável (entre uma e outra perseguiçãozita religiosa) pela decisiva expansão de Nova Amesterdão – mais tarde rebaptizada de Nova Iorque. Esta ilustre linhagem não terá impedido Wainwright de assinar essa obra-prima de subtileza intitulada I Wish I Were A Lesbian.
O confronto tornava-se assim inevitável: o pequeno Rufus ia cantando Heart Of Glass dos Blondie no banco de trás do carro do pai, com falsetes e meneios incluídos. Loudon, que para celebrar o nascimento do rapaz escreveu o extraordinário Rufus Is A Tit Man, via as suas esperanças de ter um filho marialva diminuirem; e mesmo depois de se ter divorciado da também cantora Kate McGarrigle continuou a manifestar o seu desagrado com a sexualidade que calhou ao seu descendente. Apesar de tudo foi por influência do pai - reconhecendo um óbvio talento – que Rufus gravou o seu primeiro disco. O resto já pertence à história da música popular.
Em 2003, depois de dois anos de dependência de metanfetaminas e uma vida afectiva em que alternou a profunda solidão com a mais ostensiva promiscuidade, Rufus Wainwright decide exorcizar os seus demónios em Want One, primeiro álbum de um díptico catártico e magnífico. É um disco épico de raiva, ternura, humor, auto-depreciação, angústia. Em termos sonoros, é uma catedral: Wainwright utiliza variadíssimos truques de estúdio que fariam as delícias de Brian Wilson. As canções continuam complexas, nos arranjos e nas letras, muitas vezes com referências eruditas – de resto a sua imagem de marca como compositor e autor. Nunca o rótulo de pop barroco (ou «pop de câmara») terá colado tão bem como em Want One. O exemplo maior desta estética – e ao mesmo tempo uma das melhores canções do disco e, de caminho, da primeira década do segundo milénio – é Go Or Go Ahead, uma saga de quase sete minutos em que o cantor lamenta o seu passado e proclama a sua ressurreição.
No final, acompanhado apenas pelo piano, chega então Dinner At Eight, a contrastar formalmente com os excessos dos temas anteriores. As palavras ganham por isso mais peso, são dedos acusadores (‘I’m gonna break you down / and see what you’re worth/ what you’re really worth to me’) até ao anúncio da redenção e, com sorte, do perdão. Sentem-se os dias que passaram, as histórias que não são ditas até chegar a este confronto.
É mesmo o que já se disse: uma canção que faz medo. E se a coloco na minha banda sonora original é porque rezo para que os meus filhos nunca venham a cantar algo semelhante, por mais genial que seja.