Dinner at Eight, Rufus Wainwright
E há este fenómeno que algumas canções contêm:
inspiram-nos medo. Receamo-las pelo excesso de tristeza, pelo excesso de
beleza, pela mais pura impotência que nos conferem. Não têm necessariamente que
chocar com os nossos dias ou actuarem como espelhos mais ou menos distorcidos.
Basta que nos enfrentem com uma verdade reconhecível, dolorosa ou não.
Dinner at
Eight, incluído no espantoso Want One (2003), é uma dessas canções.
Para ser rigoroso, trata-se de um ajuste de contas cantado e musicado, com a
voz e as palavras de Rufus Wainwright a
traduzirem anos de raiva e mal estar que de repente irrompem de forma
vulcânica, libertados por pretextos banais, cobrindo uma solidão e uma
necessidade de amor que esfaqueiam a alma. Transforma-nos em voyeurs
hipnotizados por um psicodrama que tem lugar mesmo à nossa frente. Transmitem a
mesma sensação de incómodo que nos assola quando um casal desconhecido discute
em voz alta perto de nós. Apetece calar aquela força, fugir. E tudo se torna
ainda mais perigoso quando sabemos que este combate a que assistimos é entre um
pai e um filho.
Loudon
Wainwright III, o pai presente neste jantar, não terá tido tanto sucesso nas
ligações familiares como o teve na sua carreira artística: para além deste Dinner
At Eight, a sua filha Martha gravou o mais explícito Bloody Mother
Fucking Asshole e dedicou-o ao paizinho. Mas se a família era disfuncional
pelo menos tinha talento: Wainwright sénior foi uma estrela nos anos 60 e 70,
chegando a ser considerado o «novo Bob Dylan». Já em 2010 venceu o Grammy
para Melhor Álbum de Folk Tradicional,
com High, Wide & Handsome. As suas canções misturam humor e
contestação, e foi admirado pela sua coragem e ao mesmo tempo por ser um tipo
porreiro. Michael Palin, um ex- Monty Python, escreve no seu diário que o
conheceu em 1969, durante a tournée americana do grupo e o achou muito
simpático e divertido. De facto, Loudon espalhava o seu encanto por todo o lado
e era requisitado para variadíssimos eventos sociais: afinal era um aristocrata
nova-iorquino, descendente directo de Peter Stuyvesant , o último director
–geral da colónia holandesa dos Novos Países Baixos e responsável (entre uma e
outra perseguiçãozita religiosa) pela decisiva expansão de Nova Amesterdão –
mais tarde rebaptizada de Nova Iorque. Esta ilustre linhagem não terá impedido
Wainwright de assinar essa obra-prima de subtileza intitulada I Wish I Were
A Lesbian.
O confronto
tornava-se assim inevitável: o pequeno Rufus ia cantando Heart Of Glass
dos Blondie no banco de trás do carro do pai, com falsetes e meneios incluídos.
Loudon, que para celebrar o nascimento do rapaz escreveu o extraordinário Rufus
Is A Tit Man, via as suas esperanças de ter um filho marialva diminuirem; e
mesmo depois de se ter divorciado da também cantora Kate McGarrigle continuou a
manifestar o seu desagrado com a sexualidade que calhou ao seu descendente.
Apesar de tudo foi por influência do pai - reconhecendo um óbvio talento – que
Rufus gravou o seu primeiro disco. O resto já pertence à história da música
popular.
Em 2003, depois
de dois anos de dependência de metanfetaminas e uma vida afectiva em que
alternou a profunda solidão com a mais ostensiva promiscuidade, Rufus
Wainwright decide exorcizar os seus demónios em Want One, primeiro álbum
de um díptico catártico e magnífico. É um disco épico de raiva, ternura, humor,
auto-depreciação, angústia. Em termos sonoros, é uma catedral: Wainwright
utiliza variadíssimos truques de estúdio que fariam as delícias de Brian
Wilson. As canções continuam complexas, nos arranjos e nas letras, muitas vezes
com referências eruditas – de resto a sua imagem de marca como compositor e
autor. Nunca o rótulo de pop barroco (ou «pop de câmara») terá colado tão bem
como em Want One. O exemplo maior desta estética – e ao mesmo tempo uma
das melhores canções do disco e, de caminho, da primeira década do segundo
milénio – é Go Or Go Ahead, uma saga de quase sete minutos em que o
cantor lamenta o seu passado e proclama a sua ressurreição.
No final, acompanhado apenas pelo piano, chega então Dinner At Eight,
a contrastar formalmente com os excessos dos temas anteriores. As palavras
ganham por isso mais peso, são dedos acusadores (‘I’m gonna break you down /
and see what you’re worth/ what you’re really worth to me’) até ao anúncio da
redenção e, com sorte, do perdão. Sentem-se os dias que passaram, as histórias
que não são ditas até chegar a este confronto.
É mesmo o que já
se disse: uma canção que faz medo. E se a coloco na minha banda sonora original
é porque rezo para que os meus filhos nunca venham a cantar algo semelhante,
por mais genial que seja.